Viracopos: Gerenciamento de risco e inteligência na repressão ao contrabando

Considerado o maior terminal do país em volume de cargas importadas, o Aeroporto de Viracopos, em Campinas (SP), vem somando importantes conquistas no que diz respeito ao reconhecimento pela boa performance no transporte aéreo. Foi o primeiro terminal a receber a certificação de Operador Econômico Autorizado (OEA), que integra o programa mundial do Comitê da Organização Mundial das Aduanas (OMA), e, em 2018, recebeu o título de melhor aeroporto de carga do mundo – até 400 toneladas/ano – concedido mediante pesquisa da primeira e mais respeitada revista de logística aérea, a Air Cargo World, sediada nos Estados Unidos.

Por trás do reconhecimento, existe um importante aparato de fiscalização também modelar no cenário global. Os Auditores-Fiscais da Receita Federal em Viracopos têm tido uma atuação destacada no combate ao contrabando e ao descaminho de mercadorias, e aos crimes correlatos de tráfico internacional de armas e drogas, corrupção e lavagem de dinheiro.

Para fazer frente a uma estrutura criminal cada vez mais robusta e moderna, a Receita tem investido, sobretudo, em inteligência. Um trabalho apurado de gerenciamento de risco permite a identificação e a seleção prévia de alvos a serem inspecionados pela fiscalização. “Com esse gerenciamento, nós conseguimos selecionar menos cargas e ter uma assertividade maior em qualquer tipo de ocorrência”, afirma o Auditor-Fiscal Emanuel Boschetti, chefe da equipe de vigilância e repressão da Receita, no aeroporto. “Quando selecionamos melhor esses alvos, acabamos por otimizar a alocação de recursos humanos e diminuir o tempo médio de despacho das mercadorias”.

Somente nos cinco primeiros meses de 2019, o trabalho da Receita Federal em Viracopos resultou na apreensão de 85 quilos de cocaína pura, em 14 operações distintas. O grama da cocaína pura chega a ser vendido, na Europa, por 60 euros – cerca de 270 reais na cotação atual – e cada passageiro, conhecido como “mula”, consegue transportar até três quilos da droga, suficiente para engordar o caixa do crime organizado em cerca de 800 mil reais, numa única viagem. “É a Receita que identifica o passageiro e a droga, e os entrega à Polícia Federal”, explica Boschetti. “Mas, infelizmente, quando esses casos saem na mídia, todo o nosso trabalho de inteligência e identificação são ignorados”, lamenta.

França e Portugal são os principais destinos internacionais dos voos que partem de Campinas. “Temos duas rotas bem conhecidas do tráfico: uma para Madri, que passa por Lisboa [Portugal] e outra direto para Orly, na França”, conta o Auditor-Fiscal Alessandro Grisi, chefe do Serep (Serviço de Vigilância e Repressão ao Contrabando e Descaminho), em Viracopos.

Além do grande volume de droga apreendida, a equipe de vigilância e repressão da Receita Federal em Viracopos faz, diariamente, um importante trabalho voltado à tributação, que consiste na identificação de mercadorias subfaturadas, com falsa declaração de conteúdo, e, ainda, à apreensão de produtos piratas, que, em 2019, já somam 14 toneladas apenas na área de carga. As bagagens de passageiros também são fiscalizadas mediante critérios que têm por base o programa de gerenciamento de risco.

Em média, cinco viajantes são submetidos à inspeção (bagagem ou pessoal) em cada voo internacional que passa pelo aeroporto. Em 2018, quase 674 mil pessoas fizeram viagens internacionais pelo terminal de Viracopos, o que representou recorde histórico, com crescimento de 23% na comparação com o ano anterior. Além de Portugal e França, os voos têm como destino a Argentina (Buenos Aires) e os Estados Unidos (Orlando e Fort Lauderdale).

Compartilhamento de dados

Para fazer a seleção das bagagens e cargas a serem inspecionadas, na chamada análise “pré-despacho”, os Auditores-Fiscais lançam mão de dois tipos de dados que são encaminhados eletronicamente pelas companhias aéreas. Os dados API (Informações Antecipadas sobre Passageiros, em português) trazem informações gerais sobre o passageiro – origem e destino, documentação e bagagem, entre outros – e são comumente encaminhados à Receita e à Polícia Federal no terminal de destino. Já os dados PNR (Registro de Identificação de Passageiros, em português), repassados às autoridades tanto da origem quanto do destino dos voos, trazem informações adicionais que também detalham, entre outros pontos, a reserva da passagem e a forma de pagamento.

Como protótipo, os Auditores-Fiscais lotados no Serep, em Viracopos, vêm desenvolvendo outra ferramenta (software) que poderá, no futuro, aprimorar a identificação prévia de supostos ilícitos, principalmente o tráfico de drogas, por meio da formação de uma ampla base de dados de pessoas físicas e jurídicas. Enquanto o sistema não é implementado, no entanto, os Auditores apontam um problema institucional que tem travado o envio dos dados PNR aos terminais brasileiros. “Essas informações chegam na base da Receita Federal, mas nós, aqui na ponta, não recebemos”, comenta Grisi. “Desde 2017, pedimos à Superintendência da Receita Federal e à Coana [Coordenação-Geral de Administração Aduaneira] que esses dados sejam trabalhados pela Receita e repassados à vigilância e repressão, o que ainda não foi possível”, acrescenta.

De acordo com os Auditores, um dos entraves está na indisponibilidade do Serpro (Serviço Federal de Processamento de Dados) para viabilizar a estrutura de envio dos dados PNR, em função da alta demanda recebida – de diversos órgãos estatais – pela empresa pública, responsável por soluções de TI do governo federal. “Com esses dados, saberemos, por exemplo, como o passageiro pagou a passagem e por quais meios, o que é muito relevante, sobretudo para identificarmos o tráfico de drogas, joias e armas”, explica Emanuel Boschetti.

Valorização

Além dos problemas pontuais enfrentados pelos Auditores, os representantes do Serep afirmam que, embora já tenha obtido o reconhecimento de parte da comunidade internacional e de setores específicos da sociedade brasileira, o trabalho de vigilância e repressão ainda carece da devida valorização no país. Exemplo disso são as malfadadas resoluções 207/11 e 278/13 da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil), que submeteram os Auditores-Fiscais, em plena atividade nas zonas primárias dos aeroportos, a procedimentos de revista feitos por agentes terceirizados de segurança, contratados pelas concessionárias.

“Durante a vigência da resolução, nós chegamos a perder alvos, ‘mulas’ do tráfico, por causa da demora para chegar àquele determinado local, provocada pelas revistas feitas no acesso à área restrita”, relembra Alessandro Grisi. No período de novembro de 2018 a fevereiro de 2019, até mesmo os veículos caracterizados da Receita Federal passaram a ser minuciosamente inspecionados antes de chegarem à pista, onde é feito o embarque e desembarque de bagagens e cargas. “Tivemos o absurdo de ter que esperar até duas horas para entrar com os carros”, protesta o Auditor.

A nova resolução da Anac (nº 515), publicada no último dia 10 de maio, que deveria ter corrigido o equívoco das anteriores, conforme previsto no Decreto 9.704/19, manteve a possibilidade de os Auditores-Fiscais serem inspecionados pelos terceirizados, mas “apenas” de forma randômica – ou seja, aleatória. “Isso continuará inviabilizando o trabalho da Receita Federal, principalmente na área de vigilância e repressão, que tem obtido resultados expressivos”, criticou Grisi.

Para o Auditor, é preciso que haja um maior reconhecimento, por parte da sociedade, do papel “estratégico e essencial” que a Receita desenvolve nas aduanas, e também vontade política para promover as mudanças necessárias nas estruturas físicas e de informação, bem como em todo o arcabouço jurídico que norteia a atuação do Fisco, incluindo as próprias normas internas do órgão.

O chefe do Serep enfatiza que o trabalho de vigilância e repressão, de percorrer os caminhos “não formais” traçados pelo crime organizado no transporte aéreo, representa um relevante serviço de proteção à sociedade – que pode ser observado desde a preservação da saúde de uma criança que deixa de ter contato com um brinquedo pirata apreendido até o não aliciamento, devido ao desmantelamento de uma quadrilha internacional, de uma “mula” do tráfico que seria alvo dos criminosos em função de sua fragilidade social.

“Na verdade, a gente precisa que o trabalho do Auditor-Fiscal na aduana seja muito mais valorizado do que é hoje, exatamente por causa de toda essa proteção – muitas vezes invisível para a grande imprensa – que os Auditores e a Receita Federal oferecem aos cidadãos brasileiros”, finaliza Alessandro.

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