Tributação e pandemia

Por Marcus Vinicius Silveira de Oliveira (*)

Em tempos de pandemia, muito se tem falado sobre o papel do Estado como maestro na contenção da crise e uma das primeiras preocupações levantadas, desde a chegada do vírus ao Brasil, foi a capacidade do Estado se auto financiar e o papel da instituição de novos tributos, fatos geradores e alíquotas, com o fim de suprirem a necessidade extraordinária de recursos econômico-financeiros, para a manutenção do funcionamento da sociedade e fornecimento de dignidade básica para a população.

Entre as hipóteses levantadas e que circulam nas redes sociais, como saídas viáveis e justas, estariam as de tirar do papel o IGF (Imposto sobre Grandes Fortunas), cobrar Imposto de Renda sobre lucros e dividendos e criar maior progressividade para o ITDCM (imposto sobre transmissão por Doação ou Causa Mortis), sem dúvidas, ideias bastante atrativas, em um primeiro momento, e de inquestionável bom senso, por estarem calcadas nos princípios da equidade e da capacidade contributiva. Nada mais justo que sejam chamados a colaborar com a sociedade aqueles que nela e a partir dela construíram grandes patrimônios e riquezas, a fim de possibilitar que o Estado seja capaz de captar recursos para manter a economia produtiva viva, criando algum mecanismo de redistribuição de renda emergencial para o trabalhador.

Há que se considerar, no entanto, que, apesar da razoabilidade evidente, essas sugestões esbarram em barreiras jurídicas e soluções outras são possíveis, na esfera tributária, a fim de poderem ter aplicação imediata, como este artigo pretende demonstrar.

Princípio Constitucional pétreo tributário da Legalidade

Primero ponto fundamental é a compreensão de que instituição e majoração de tributo só podem ser estabelecidas mediante lei. Apesar do legislador constitucional não expressar taxativamente, a mesma regra aplica-se também em relação à redução de tributo, pois apenas uma lei nova pode revogar lei anterior. Tal princípio encontra-se elencado na CF/88, no art.150, I.

Existem, entretanto, exceções ao princípio tributário da legalidade. Tais exceções, aplicam-se apenas à majoração de tributos e à redução de tributos. Não existem exceções que digam respeito à instituição de tributos.

A majoração de tributos pode dar-se através da majoração de alíquotas, da majoração de base de cálculo, ou da majoração de ambas.

A possibilidade de majoração mediante ato do executivo (exceção ao princípio tributário da legalidade) restringe-se às alíquotas.

Os tributos que são abrangidos pelo escopo da exceção ao princípio da legalidade são o II, o IE, o IPI e o IOF, apenas, devido à essência extrafiscal dos mesmos (são tributos cuja finalidade principal não diz respeito à arrecadação, mas diz respeito à instrumentalização de políticas econômicas, as quais demandam, obviamente, celeridade).

A Constituição estabelece que limites e condições para essas alterações por ato do poder executivo devem fixados em lei.

A CF prevê, ainda, mais dois casos de exceção ao princípio da legalidade tributária, onde são permitidas alterações de alíquotas por ato do executivo. É o caso da CIDE (Contribuição interventiva sobre o setor de combustíveis) e do ICMS sobre combustíveis e lubrificantes sujeitos à incidência unifásica.

Vigência e aplicação da legislação tributária

A vigência das normas tributárias encontra-se positivada nos artigos 101 a 104 do Código Tributário Nacional – CTN (Lei 5.172/66).

A vigência diz respeito a dois aspectos. Aspecto temporal e aspecto espacial.

Vigência no tempo: delimita o período durante o qual uma norma é de respeito obrigatório pela sociedade.

Vigência no espaço: Está diretamente relacionada ao princípio da territorialidade e delimita o alcance geográfico da norma, salvo exceções, limitado à área do ente estatal que a expediu.

Interessa-nos a primeira para as questões ora levantadas.

Em princípio, uma lei entra em vigor na data estabelecida em seu texto pelo legislador. Tal lapso temporal entre a publicação e a vigência da lei é conhecido como vacacio legis (vacância da lei).

Em algumas situações, o legislador pode não determinar expressamente a vigência da lei. Nestes casos, a lei entrará em vigor 45 dias após a data da publicação, conforme estabelecido no art. 1º da Lei de introdução às normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei 4.657/42).

O CTN, entretanto, confere regramento especial de vigência para algumas leis tributárias, como será visto mais adiante.

Princípio da anterioridade tributária

A CF/88 estabelece dois princípios, conhecidos como princípio constitucional da anterioridade tributária e princípio constitucional da noventena. Tais diretrizes não alcançam, entretanto, todos os tributos. As principais exceções aos princípios em lente são o II (Imposto sobre Importações), o IE (Imposto sobre Exportações), o IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), o IOF (imposto sobre operações financeiras de crédito, câmbio, seguro e sobre títulos e valores mobiliários) e o Empréstimo Compulsório (modalidade em que vamos nos debruçar mais a frente).

A anterioridade e a noventena estão positivadas na CF, art. 150, III, “b” e “c” e são princípios restritos aos casos onde há instituição ou majoração de tributos, excetuando-se de aplicação, conforme destacado acima, os tributos mencionados.

Prescreve a CF, no art. 150, III, “b” que é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios cobrar tributos “no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou” (Princípio da Anterioridade).

Complementa tal dispositivo, a CF, no art. 150, III, “c” que os referidos entes federativos estão vedado de cobrar tributos “antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b“. Tal norma recebeu o nome doutrinário de Princípio da Noventena, ou Princípio da Anterioridade Nonagesimal.

Quatro são os fatores a serem considerados a fim de se prospectar a data na qual tributos instituídos, ou majorados, ainda que majorados em situações específicas, ou ainda que novas hipóteses de incidência para tributo já existente sejam criadas. A vigência da norma, a anterioridade, a noventena e os tributos que não se submetem aos dois princípios em relevo.

Tributo submetido à anterioridade (e, por conseguinte, à noventena)

Os princípios da anterioridade e noventena informam o menor lapso temporal possível para que majoração ou criação de tributos tenham aplicabilidade, entretanto, tal aplicabilidade também se submete às normas que dizem respeito à vigência, sendo anterioridade (e noventena) e vigência, institutos distintos e devem ser observados conjuntamente.

A própria lei, regra gral, determina em seu corpo a data da vigência e, em caso de omissão, diz a legislação que a vigência dar-se-á 45 dias após a publicação. Em seguida, deve-se observar se decorrido o prazo de 45 dias (caso de omissão do legislador), ou se decorrido o prazo estabelecido na própria lei, se a mesma já estará apta a produzir efeitos em face dos princípios constitucionais tributários da anterioridade e noventena.

Tributo não submetido à anterioridade (e, por conseguinte, não submetido à noventena)

Para ter sua aplicação imediata (desconsiderando a anterioridade e noventena) à data da publicação da lei instituidora ou majoradora, é estritamente necessário que o legislador estabeleça taxativamente que a aplicação da norma se dê a partir da publicação, ou a aplicação apenas será possível 45 dias após a publicação da lei.

Vigência e eficácia das leis tributárias, são, de acordo com o exposto, institutos diferentes.

A vigência das leis tributárias também recebe tratamento específico no CTN, no art. 104, para alguns casos, casos estes que estarão submetidos, não ao regramento apontado no art. 1º da Lei de introdução às normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei 4.657/42), mas ao que dispõe esta norma do CTN, segundo a qual entram em vigor no primeiro dia do exercício seguinte ao da publicação as leis relativas a impostos sobre patrimônio e renda, quando: instituem ou majoram tais impostos, criam novas hipóteses de incidência ou extinguem ou reduzem isenções.

A vigência especial coincide com a própria anterioridade, em termos temporais. Diz respeito à instituição, majoração e à extinção de isenções, a qual não estaria sujeita, de acordo com a teoria tradicional das isenções, ao princípio da anterioridade. Ao receber também tratamento especial de vigência, o qual acaba por coincidir com o lapso temporal prescrito pela CF para a anterioridade, fica também garantida a produção tardia de efeitos quando de uma revogação de isenção enquadrada nestes requisitos.

Importante destacar que, após a EC 42/2003, a noventena também passou a prescrever sua observância para a maior parte dos tributos sobre patrimônio e renda.

Como a norma especial prevalece à norma geral, a norma geral (art. 1º da Lei de introdução às normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei 4.657/42)) só será aplicada para os casos não listados no art. 104 do CTN.

Empréstimo Compulsório (CF art. 148)

A CF confere à União a competência para instituir uma modalidade tributária conhecida como Empréstimo Compulsório, de caráter excepcional e temporário.

Tal tributo destinar-se-ia a sustentar gastos circunstanciais oriundos de uma guerra externa, calamidade pública ou investimento público. Como empréstimo que é, caberia a União posterior restituição.

Para a instituição de tal tributo, estabelece a CF que a competência para tal seria exclusiva da União e deveria ocorrer por meio de lei complementar, para os três casos já descritos (guerra externa, calamidade pública ou investimento público)

Excetuando-se o caso do investimento público, para os casos de guerra externa ou calamidade pública, a CF afastou a aplicação do princípio da anterioridade e da noventena, de forma que, caso o governo federal instituísse (via lei complementar) tal tributo para a circunstância pandêmica atual de coronavirus, o tributo poderia ter eficácia imediata à sua publicação.

Destaca-se que a calamidade pública (bem como as outras situações) não se configurariam como o fato gerador do Empréstimo Compulsório, mas como as circunstâncias que autorizam a implementação do tributo.

Como o legislador constitucional nada fala a respeito do fato gerador, o mesmo seria de livre escolha pela União, no texto da lei complementar, embora não haja consenso na doutrina, pois parcela da mesma entende que a União estaria restrita aos fatos geradores de impostos de sua competência e outra parcela defende que a União só poderia escolher para fato gerador hipóteses inéditas, fora da esfera dos impostos discriminados na CF. Como a Constituição não estabeleceu restrição, não há motivo para entender que haja qualquer restrição quanto aos fatos geradores escolhidos.

Natural que, em uma situação de urgência absoluta, os fatos geradores escolhidos devam guardar intrínseca relação com a não essencialidade ou característica supérflua dos bens, com a manifestação de riqueza, ou a obtenção de rendas acima de patamar razoável, com a capacidade contributiva e seletividade, em resumo. Embora a Constituição não faça tal exigência, as características motivadoras deste tributo, unidas ao princípio constitucional da razoabilidade, impõe que o bom senso paute os ditames do tributo, ao ser instituído.

A Constituição também determina que o destino da arrecadação do Empréstimo Compulsório seja exclusivamente o de financiar as despesas que autorizaram a implementação do referido tributo.

O art. 15 do CTN também trata do tributo em questão, apenas tendo o inciso III perdido o efeito, por consignar outra hipótese para sua implementação. O parágrafo único do referido dispositivo legal determina que a lei fixará obrigatoriamente o prazo do empréstimo e as condições do seu resgate.

Benefícios Fiscais – Isenções

Aqui tratamos de um tópico com alcance amplo, pois os mesmos (benefícios) ocorrem em tributos das três esferas da federação (Estados e DF, Municípios e União).

Dentro da espécie benefícios fiscais encontramos o gênero isenção.

Isenção é a dispensa legal do pagamento de tributo, que a princípio, seria devido.

A lei que concede a isenção não extingue ou reduz o tributo, portanto, por ocasião de sua revogação por lei posterior, a mesma não estará instituindo ou majorando o tributo, mas apenas afastando a dispensa antes decretada. A consequência imediata disso é que revogação da isenção não se sujeita aos princípios constitucionais da anterioridade e noventena. É a teoria que parece corresponder ao entendimento adotado pelo STF em sua súmula 615. Existem outras teorias que defendem o oposto, entretanto.

Conforme assinalado anteriormente, o art. 104 do CTN confere vigência especial para revogações de isenções relativas a impostos sobre patrimônio e renda.

Impostos sobre patrimônio e renda são o IR, ITR, IGF, IPVA, ITDC, IPTU e ITBI.

Tal dispositivo relativiza a precariedade que as isenções, regra geral, possuem, determinando que a revogação de isenções referente a tributos sobre patrimônio e renda que forem efetuadas hoje, só terão aplicabilidade efetiva no ano seguinte.

Isenções irrevogáveis

A regra geral é a precariedade das isenções, entretanto, além do regramento especial de vigência para leis que revoguem isenções de tributos referentes a patrimônio e renda, o CTN garante, em alguns casos, a fruição da isenção, mesmo diante de revogação da lei que venha a conceder a isenção.

A espécie de isenção com tal prerrogativa é aquela que, concomitantemente, apresente as seguintes duas características: estabelecida por lei a prazo determinado e esteja subordinada a condições (isenção sujeita à condição onerosa).

Condição onerosa seria a contraprestação exigida do contribuinte, por lei, como requisito para gozo do benefício concedido.

Benefícios fiscais – outras considerações

Ainda que possamos estar diante de um benefício fiscal de natureza irrevogável, a garantia para a tal é que o contribuinte esteja em dia com a contrapartida exigida pelo Estado.

Os benefícios fiscais, para serem válidos, também precisam ter sido concedidos seguindo os requisitos previstos na legislação.

Conclusão

Embora sedutora a ideia de angariar recursos para a calamidade utilizando-se mecanismos de tributação mais progressiva, hoje ainda não adotados, esbarramos nos empecilhos legais, muitas vezes de ordem constitucional.

As opções juridicamente viáveis para implementação e obtenção imediata de recursos na órbita tributária encontram-se restritos à adoção, via lei complementar, de Empréstimo Compulsório (as formas de devolução do empréstimo são de livre escolha da União e podem prever longa carência e com uma infinidade de parcelas, cujo pagamento poderia iniciar-se depois de consolidada a recuperação econômica. Durante a devolução, poderia ser utilizada a compensação com outros créditos tributários, eventualmente existentes em favor da União). A União pode e deve utilizar critério e fatos geradores para manifestações grandes de riqueza, grandes rendas, grande capacidade contributiva e seletividade dos bens (propriedade de lanchas e jatos, por exemplo).

Pode ainda a União criar novas alíquotas e fatos geradores do IOF para grandes transações financeiras, pois o referido tributo não está sujeito aos princípios da anterioridade e noventena. Pode majorar alíquotas por mero ato do executivo, eis que, para o caso, restaria, como visto anteriormente, afastado o princípio da legalidade.

Os demais tributos indiretos que se constituem em exceções à anterioridade e noventena, ou impactam na economia negativamente, ou não possuem objetivo arrecadatório, por sua extrafiscalidade. O aumento de tributos indiretos impacta negativamente o consumo e a economia produtiva, sendo um caminho desaconselhável, no entanto, mesmo sendo tributo de natureza extrafiscal e de natureza indireta, o IOF pode ser direcionado, sem as restrições da noventena e anterioridade, para fornecer recursos para a crise, já agora, a partir da criação de novas alíquotas progressivas para transações financeiras de altíssimo valor (e/ou tipos específicos de transações financeiras), normalmente praticadas por quem possui elevada renda. Se corretamente direcionadas as mudanças no IOF, o impacto negativo no setor produtivo pode ser praticamente nulo.

As isenções fiscais que não possuam a característica de irrevogabilidade podem ser imediatamente revogadas (observados os impactos econômicos negativos que, em alguns casos, possam surgir) e os recursos obtidos a partir das revogações, imediatamente empregados durante a crise.

As isenções irrevogáveis e benefícios fiscais devem sofrer uma devassa em auditoria fiscal e consideradas nulas as eivadas de irregularidades na concessão ou por falta de contrapartida eventual de contribuintes.

Todas as medidas que remetem às isenções podem ser praticadas por todos os entes federativos, não só a União, para captação de recursos em todas as esferas.

Ressalta-se que o Empréstimo Compulsório, dentre todas as possibilidades analisadas, é o melhor e mais indicado instrumento de exação para ser empregado durante a atual conjuntura pandêmica, podendo, quando bem estruturado, ser ferramental imprescindível para a manutenção de políticas públicas sociais emergenciais, capazes de manter a dignidade da população e de reduzir o impacto econômico negativo no setor produtivo.

Essas ações, unidas à abertura de créditos extraordinários, em todas as esferas da federação, os quais são permitidos a fim de se atender a despesas imprevisíveis e urgentes, como as oriundas desta calamidade, podem garantir um aporte de recursos para serem utilizados no momento atual.

Concomitantemente, podem ser concedidos, por ato dos executivos, pacotes de renda mínima e básica e pode o legislativo colocar em votação, para terem efeito para o ano que vem (2021), as demais alterações propostas para a legislação tributária, como a tributação de lucros e dividendos e a implementação do IGF, que nunca saiu do papel.

(*) Marcus Vinicius Silveira de Oliveira é Auditor Fiscal da Receita Estadual do Rio de Janeiro

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