Trabalho conjunto da Receita com MPF

Integrante do Grupo de Apoio sobre Lavagem de Dinheiro, do Ministério Público Federal, e do Grupo de Trabalho da Lava Jato na Procuradoria-Geral da República, o Procurador Marcelo Ribeiro conhece, de perto, as relações exitosas entre a Receita Federal e o MPF. Nesta entrevista, ele comenta as ações conjuntas de enfrentamento ao contrabando e descaminho, provenientes do trabalho de fiscalização e repressão conduzido pelos Auditores-Fiscais nas aduanas.

O procurador elenca a Receita Federal como “parceira prioritária” do Ministério Público, por deter conhecimento e expertise essenciais ao mapeamento de rotas do tráfico e à identificação de possíveis alvos.

Sobre a recente tentativa de amordaçar os Auditores-Fiscais, por meio da inclusão de uma emenda (posteriormente retirada) na Medida Provisória da reforma ministerial (MP 870/19) – e que agora volta à discussão no PL 6064/16 –, Marcelo Ribeiro é enfático ao declarar que a Receita tem o “dever” de investigar eventuais crimes “contra a administração e de lavagem de dinheiro” relacionados aos processos de natureza tributária e aduaneira.

O procurador reconhece que a Receita Federal carece de maior fortalecimento, visibilidade e valorização, ao enfatizar que grandes operações de combate à corrupção encampadas pela Polícia Federal, a exemplo das renomadas Lava Jato e Zelotes, têm despontado do profícuo trabalho dos Auditores-Fiscais.

Como se dá a interação entre a Receita Federal e o MPF no tratamento de crimes identificados pela fiscalização aduaneira?
A interação com a Receita se divide em várias frentes. Especificamente em relação à prevenção ao contrabando e descaminho, que é uma área cara para nós, a gente tem um trabalho diretamente com a Corep [Coordenação-Geral de Combate ao Contrabando e Descaminho] e, nas unidades regionais, com as Direps [Divisão de Repressão ao Contrabando e Descaminho]. Você tem a situação aeroportuária, dos portos – Vitória, Santos e Tubarão são bem conhecidos e expressivos – e eu vejo como muito importante, também, as chamadas “fronteiras secas”, nos acessos terrestres. A interação elementar seria na ação de fiscalização da Receita, com o apoio ou não da Polícia Rodoviária Federal, na verificação de transporte acima da cota, de produtos proibidos… E essa interação também é boa porque o contrabando e descaminho dificilmente andam de forma isolada às ações de tráfico. E a gente não pode desprezar o quanto o contrabando de cigarro, por exemplo, é rentável. Dá pra afirmar que, até em razão da pena, a opção pelo contrabando gera um custo/benefício muito maior para o infrator.

Entre as agências do Poder Público, não se poderia sequer falar em sigilo

O senhor quer dizer que as penas são muito brandas?
A pena do tráfico é enorme; a pena para importação de medicamentos e outros produtos de consumo para fins de saúde é absurdamente grande e chega até a ser considerada inconstitucional por alguns tribunais. Já a pena do contrabando fica próxima de um ano. Por isso, eu falo do custo/benefício. E quando você pensa na rentabilidade, a gente está falando numa margem mínima de 400% na revenda do cigarro. Então, se torna negócio bastante rentável.

Em que situações ocorre a comunicação entre a Receita e o Ministério Público?
A gente pode colocar pelo menos dois principais grupos de situações. O usual é esse trabalho que citei antes, que podemos chamar de trabalho de “formiguinha”, a atuação ostensiva, que é essencial. E o segundo é um trabalho mais estratégico. E aí, realmente, a interação entre a Receita e o Ministério Público Federal produz efeitos maiores e deve ser incentivada. Essa interação depende de um contato de uma coordenação do Nurep [Núcleo de Repressão ao Contrabando e Descaminho] com o procurador do caso, ou para levar o caso a ser distribuído no Ministério Público. Isso demonstra um trabalho de base, um trabalho prévio, que é feito pela Receita; com o mapeamento de rotas, de condutas e de possíveis infratores. E isso só pode ser obtido pela experiência em campo, por meio de informações fiscais… Daí o caráter de insubstituibilidade da Receita. Não há outro órgão que teria a mesma capacidade de obtenção e análise desses dados.

E essas informações acabam embasando as investigações do MPF…
Exato! Com base nesse conteúdo, a Receita vem e fala: “olha, a gente tem um potencial caso aqui”; por exemplo, de uma empresa optante do Simples que tem uma movimentação bancária de um milhão por mês. Aí, com esse dado macro, amplo, a gente traça estratégias específicas para aquele caso. A gente verifica, por exemplo, a composição societária, a periodização de rotas… e criamos estratégias conjuntas de atuação.

Sobre essa atuação conjunta, como vocês lidam com o sigilo fiscal imposto pelo artigo 198 do CTN?
Você tem, de um lado, o artigo 198 do Código Tributário Nacional, mas tem, de outro, uma orientação [nota Cosit] que reconhece a inoponibilidade – a impossibilidade de se opor – do sigilo fiscal ao Ministério Público. E também vai ao encontro da Lei Complementar 35, que diz que, uma vez requisitado por órgão do Ministério Público, esse acesso não pode ser negado sob alegação de sigilo. Isso está vigorando, mas, mesmo nessas situações, nós somos extremamente cautelosos. As pesquisas que a Receita faz, sobre informações bancárias e fiscais, não são compartilhadas com o MPF. Apenas dados brutos, de rotina, movimentação incompatível etc. E quando, realmente, há a necessidade de acessar determinado dado, em situações muito limítrofes, a gente já representa judicialmente para evitar nulidade posterior.

O senhor, então, é favorável ao compartilhamento de dados sigilosos para fins de investigação?
Eu tenho uma posição, digamos, bem minoritária sobre isso. Eu entendo que entre as agências do Poder Público não se poderia sequer falar em sigilo. Você está falando de Estado brasileiro! Você poderia dizer: “ah, mas tem dados que só cabem a determinado órgão porque implicam decisões estratégicas”. Sim, mas aqui não é estratégico; é finalidade de investigação! E todos os órgãos que tratam essas informações sensíveis já têm o dever de manter o sigilo. A utilização é voltada, especificamente, para aquela investigação! Então, eu sou a favor de um compartilhamento amplo, mas devidamente motivado e vinculado a uma investigação. E, para isso, nós precisamos de segurança jurídica, porque esse quadro ainda é controverso. A gente precisa, realmente, de uma definição clara do quanto a Receita pode compartilhar conosco, tanto na questão da previsão legal quanto da jurisprudência dos tribunais.

Existe, também, algum protocolo que preveja a comunicação inversa, do Ministério Público para a Receita Federal?
É curioso, mas a gente não tem um convênio ou protocolo formal nesse sentido. Por obrigação legal, é até frequente que, em uma investigação que, em princípio, não tenha nada a ver com aspectos tributários, a gente verifique algum patrimônio “descoberto”, que seja de interesse da Receita. Então, por dever legal, a gente faz a comunicação. Normalmente fazemos isso por ofício e, se for algo sensível, resultante de interceptação ou alguma medida sujeita a segredo de justiça, a gente pede o prévio compartilhamento à autoridade judicial.

Como o senhor avalia o trabalho da Receita Federal nas aduanas?
Você perguntou isso pra pessoa mais adequada, porque eu acho que o trabalho da Receita e do Auditor-Fiscal é essencial e precisa ser mais divulgado, para que o reconhecimento venha pela visibilidade de algo que já existe. Eu penso que a apreensão, pura e simplesmente, qualquer pessoa com um colete e uma arma faz. Agora, para saber o que apreender, onde apreender, como apreender, quanto apreender e qual a repercussão disso, eu entendo que a Receita Federal é a instituição mais adequada. Primeiro porque ela consegue quantificar o prejuízo do valor subtraído, do ponto de vista tributário, o que já é importantíssimo. Além disso, por ter a possibilidade de acesso às informações financeiras e fiscais, ela já consegue traçar um perfil do possível infrator. E com essas informações – e aí eu falo que falta uma informação que teria que ser disponibilizada para Receita – ela consegue ter uma estratégia melhor de atuação.

Limitar as investigações da Receita(…) seria como mutilar toda sua gama de atribuições

E que informação seria essa?
Uma ferramenta que já está disponível na administração pública e a fiscalização da Receita não possui, mas deveria possuir, são os OCRs, que são leitores de placas de carros nas estradas. Se esse acesso fosse conferido à Receita, ficaria muito mais fácil cruzar essas informações, que eu já mencionei, com o fluxo de veículos. Você consegue pegar aquela placa específica, ler toda a rota dela, por exemplo, de uma fronteira sul até um ponto de venda. A Polícia Rodoviária Federal já tem esse serviço e, na minha opinião, deveria haver o compartilhamento com a fiscalização da Receita.

Como o senhor viu essa tentativa recente de limitar a atuação dos Auditores, por meio de uma emenda à MP 870/19?
Um absurdo! As investigações, ações de controle interno, ações da Corregedoria, detectam para além dos crimes contra a ordem tributária. Elas pegam crime contra a administração e lavagem de dinheiro, o que mostra que a Receita não apenas pode como deve investigar esses casos. A ideia de limitar as investigações da Receita me parece que seria como mutilar toda sua gama de atribuições. E eu nem levaria pro lado da prevaricação, mas, sim, da alocação eficiente de recursos e da expertise. Só pra ilustrar: o crime de contrabando é sujeito à fiscalização e repressão porque, sob a ótica da Receita é um crime contra a ordem tributária. Mas, se você pegar o Código Penal, está previsto nos crimes contra a administração. Será que, então, a gente também tem que tirar o contrabando da Receita? Tem alguma coisa que é mais “a cara” da Receita do que ação de repressão ao contrabando? Não faz o menor sentido!

Na Operação Lava Jato, inclusive, essa troca de informações foi determinante…
Foi essencial! Eu diria que a Lava Jato não teria o formato que tem, o êxito que teve, sem a ampla atuação da Receita, nos modos em que se deu. Temos outros bons exemplos, como a também recente Operação Zelotes e o caso clássico, que continua até hoje e mostra bem essa interação entre o Ministério Público e a Receita, que é a Operação Comboio. Da perspectiva da persecução penal do Ministério Público, a Receita Federal é nossa parceira prioritária.

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