
Os impactos socioeconômicos de dimensão global que a pandemia da Covid-19 tem provocado reacenderam em todo o mundo uma antiga discussão: que modelo de Estado reúne os atributos para assistir adequadamente suas populações, sobretudo em momentos de crise? Alguns analistas já anteveem que a crise provocada pelo coronavírus terá potencial duradouro na rediscussão do papel do Estado e criará uma nova ordem econômica.
No Brasil, o início da disseminação da Covid-19 coincidiu com o momento em que Executivo e Legislativo federal se articulavam para se debruçar sobre uma proposta de Reforma Administrativa que impactaria profundamente o desenho do Estado brasileiro. A proposta do governo não chegou a ser enviada ao Congresso, mas as suas diretrizes eram inequívocas: redução de despesas com o funcionalismo civil, flexibilização da estabilidade, enxugamento drástico no número de carreiras do Executivo (de 310 para 20 ou 30), foco na digitalização dos serviços públicos e no atendimento virtual.
Enquanto preparava a versão final da Reforma Administrativa, o Executivo apresentou três Propostas de Emenda à Constituição que, por si sós, podem produzir um grande impacto no serviço público: as PECs 186 (Emergencial), 187 (Revisão dos Fundos) e 188 (Pacto Federativo), que integram o Plano Mais Brasil e cuja discussão no Legislativo está sustada em decorrência da pandemia.
Em relação à PEC Emergencial, o diretor de Assuntos Parlamentares do Sindifisco Nacional Marcos Assunção explica que o efeito mais danoso para os servidores é a possibilidade de redução salarial de até 25%, vinculada à redução da jornada. Para a população, é como precisar de mais serviços de saúde, de segurança e de educação e receber muito menos. “A redução está condicionada a alguns gatilhos que, pelo texto da proposta, já estariam acionados”, diz ele. A PEC 186 também afeta promoções e progressões, aumentando o período entre o ingresso no serviço público e o topo da carreira, além de suspender os concursos públicos.
Pela proposta, uma parte dos novos servidores deverão ser contratados pelo regime CLT e, somente após um período de dez anos, poderão conquistar a estabilidade, ficando submetidos à subjetividade das chefias e ao arbítrio dos governantes. Outro ponto polêmico é a proibição de filiação partidária. “Se tem filiação partidária, não é servidor, é militante. Pode ser militante, mas não pode ter estabilidade”, afirmou o ministro da Economia Paulo Guedes.
Na opinião de Marcos Assunção, a diminuição dos serviços essenciais trará prejuízos óbvios. “É preciso lembrar que vivemos num país em que a maioria da população depende diretamente da prestação de serviços públicos”, diz ele. “Em tempos de combate a uma pandemia, para além dos serviços de saúde, seria assinar uma sentença de morte para a população reduzir serviços em áreas de arrecadação e fiscalização aduaneira, vigilância sanitária, segurança pública, entre outras”.

Fundos Públicos
Extinguir todos os 248 fundos públicos infraconstitucionais é o objetivo da PEC 187, que pretende desvincular R$ 219 bilhões, recurso que seria utilizado, pela proposta do governo, na “amortização da dívida pública da União” e em “projetos e programas voltados à erradicação da pobreza e a investimentos em infraestrutura”. Entre os fundos ameaçados de extinção, está o Fundo Especial de Desenvolvimento e Aperfeiçoamento das Atividades de Fiscalização (Fundaf).
“O Fundaf arca com quase todas as despesas da Receita Federal. Então, para o funcionalismo e para a própria Receita, a extinção desse fundo pode trazer prejuízos que ainda não temos como mensurar, prejudicando igualmente a prestação de serviços à população. Boa parte dos fundos garante o funcionamento dos órgãos aos quais estão vinculados”, alerta Marcos Assunção.


Para o presidente do Sindifisco Nacional, Kleber Cabral, o risco de extinção do Fundaf ameaça o futuro da administração tributária. “A própria Constituição estabelece a função exercida pela administração tributária como essencial para o funcionamento do Estado, no mesmo grau de relevância da saúde e do ensino. Isso tem uma razão de ser: a compreensão de que a viabilidade das políticas públicas em todas as áreas depende da eficiência dos órgãos de arrecadação”.
Kleber observa que o Brasil enfrenta uma grave crise fiscal e que todos os países que enfrentaram crise semelhante mantiveram suas máquinas arrecadatórias funcionando em sua totalidade. “No Brasil, mesmo com o Fundaf, a Receita Federal sofreu um corte de 36% no orçamento. Eliminar as fontes de financiamento gera desorganização do Estado e fragilização das políticas públicas”, avalia.
Reação
Com o apoio de 33 senadores, o Sindifisco protocolou na Secretaria Geral da Mesa do Senado Federal uma emenda para evitar a extinção de fundos que são essenciais ao fortalecimento dos órgãos de arrecadação, fiscalização e controle do Estado. De forma mais ampla, para se contrapor a todas essas iniciativas, 245 deputados e seis senadores de diversas legendas lançaram, em outubro do ano passado, a Frente Parlamentar Mista em Defesa do Serviço Público.
O colegiado é presidido pelo deputado federal Professor Israel Batista (PV-DF) e já acumula uma extensa agenda de eventos e mobilizações, dentro e fora do Congresso Nacional, além do lançamento de estudos de especialistas. A iniciativa tem apoio de diversas entidades, como a Frente Associativa da Magistratura e do Ministério Público (Frentas) e o Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas do Estado (Fonacate), do qual o Sindifisco Nacional faz parte.
O deputado Professor Israel acredita que um dos principais desafios diante da Reforma Administrativa é vencer a disputa de narrativa. “São os mitos criados pelo governo para defender essa proposta. Primeiro que o Estado brasileiro está inchado, segundo que a gente gasta demais com servidor público, terceiro que o servidor público é um parasita que não trabalha”, elenca. Outro desafio importante é o trabalho de convencimento dos parlamentares, que deve ser feito, segundo ele, com relatórios bem embasados e propostas bem fundamentadas.
Na opinião do deputado, a pandemia da Covid-19 tem demonstrado a importância do serviço público no Brasil. “Agora que o país entra numa crise sem precedentes, a maior dos últimos 100 anos, a gente percebe que sem um Estado fortalecido, com servidores bem organizados, com uma administração pública bem desenhada, entraríamos em colapso”, observa. Pontua ainda que todas as teses que defendem a diminuição da participação do Estado na economia e na sociedade caíram por terra nesse momento.
“Pessoas que defendiam a diminuição do Estado simplesmente desapareceram ou mudaram o discurso, porque na linha de frente do combate a essa pandemia temos servidores do sistema de segurança pública, da saúde pública, assim como professores e escolas se dedicando para tentar produzir um formato novo e emergencial de educação. Essa é a demonstração de que não podemos nos deixar seduzir pelos discursos fáceis que pregam uma menor participação e presença do Estado na sociedade brasileira”, resume o parlamentar.
Crise
Marcos Assunção enfatiza que, embora a rotina do Congresso tenha sido alterada pela pandemia da Covid-19, suspendendo a tramitação das PECs, o Sindifisco Nacional tem se mobilizado para sensibilizar os parlamentares em relação aos prejuízos que o Plano Mais Brasil pode trazer à sociedade e ao erário, uma vez que ele não excepciona atividades essenciais, como tributação e arrecadação. “A arrecadação fiscal é a base de tudo, apesar de alguns não quererem admitir isso. Só existe um hospital e um médico ali dentro, porque há um recurso, e esse recurso não surge do nada. É preciso uma atividade forte do Estado provendo esse recurso”.
O Auditor-Fiscal ressalta ainda que nenhuma carreira é contra a modernização e o aperfeiçoamento do serviço público, mas as soluções não podem e nem devem passar pela redução dos serviços prestados à sociedade. No momento em que o mundo inteiro se desdobra em ações para tentar conter uma pandemia sem precedentes, contar com um serviço público estruturado e de qualidade pode fazer a diferença para garantir a saúde e a vida de milhares de pessoas.
“Violência contra os servidores e a sociedade”, diz presidente do Fonacate
Rudinei Marques, presidente do Fonacate, entidade que representa mais de 200 mil servidores públicos das carreiras típicas de Estado, avalia que reduzir a jornada de trabalho, com a diminuição proporcional de vencimentos, é uma violência contra os servidores e contra a sociedade. Isso porque reduzir a jornada significa diminuir a oferta de serviços públicos.
“E isso ocorre num momento de profunda crise, na qual a população necessita cada vez mais de um Estado forte para amenizar as vicissitudes sociais. Com o esvaziamento dos fundos infraconstitucionais, previsto na PEC 187, que tira recursos das políticas públicas, teremos a noção do absurdo que são essas três propostas em conjunto”, critica.
Ele aponta que o discurso do “Estado mínimo” revela que a equipe econômica do governo federal está em descompasso com as boas práticas dos países desenvolvidos. “A média de empregabilidade no setor público, nos países da OCDE, está em torno de 22%; no Brasil, temos 12% da massa laboral no setor público. Nos países subdesenvolvidos, esse percentual é inferior ao brasileiro.
Rudinei Marques destaca o papel fundamental das carreiras típicas de Estado no enfrentamento da pandemia do coronavírus e diz acreditar que, superada a crise, é provável que haja um debate mais responsável sobre o papel do Estado na vida nacional. “Por exemplo, o discurso inconsequente acerca da saúde pública e da pesquisa no país, com flagrante redução de investimentos nos últimos anos, deve ser reelaborado. Não é mais aceitável que, a cada governo, os ataques ao serviço público sejam mais violentos, pois, na hora da crise, como sempre, é o serviço público que tem o dever de buscar as soluções”.
