
Alçada pelo governo federal como a solução para a sangria das contas públicas, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que trata da Reforma Administrativa chegou ao Congresso Nacional, em 2020, como um grande cavalo de Troia. Além de ser estruturada em informações contraditórias e dados frágeis e inconsistentes, a PEC 32/2020 traz em seu bojo um leque de medidas que, caso aprovadas, trarão grande insegurança jurídica para o serviço público no país, sobretudo para o exercício tecnicamente autônomo dos cargos de Estado.
A proposta foi entregue, em setembro do ano passado, pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, ao então presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), mas a tramitação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) só foi iniciada em março deste ano, tendo sido a relatoria distribuída ao deputado Darci de Matos (PSD-SC), que, no último 23 de abril, deu entrevista ao podcast do Sindifisco Nacional acerca do tema.
A CCJ aprovou a constitucionalidade da matéria, por um placar de 39 a 26 (exatos 60% dos parlamentares votantes na comissão), remetendo à matéria para análise de mérito a uma comissão especial, instalada no início de junho. Na comissão, foram escolhidos para conduzir a discussão os deputados Fernando Monteiro (PP-PE), como presidente, e Arthur Maia (Cidadania-BA), como relator.
O conteúdo da PEC é alvo de intensa crítica das entidades que representam os servidores, que buscam apoio para modificações profundas no texto. “Está tudo muito instável, e agora estamos atrás de virar o jogo e garantir apoio para as mudanças que precisamos que sejam feitas no texto”, afirma o deputado federal Professor Israel Batista (PV-DF), que preside a Frente Parlamentar Mista em Defesa do Serviço Público, conhecida como Servir Brasil.
Desde que a proposta chegou à Câmara, a Frente tem feito reuniões virtuais e elaborado propostas de mudança na PEC, incorporando sugestões de entidades que representam servidores de carreiras típicas de Estado, como o Sindifisco Nacional. A mobilização surtiu efeitos iniciais, e o substitutivo admitido na CCJ suprimiu os princípios da “imparcialidade”, “transparência, inovação, responsabilidade, unidade, coordenação, boa governança pública” e “subsidiariedade” que constavam no texto original.
O texto admitido também permite aos servidores de cargos típicos de Estado a possibilidade de exercício de outra atividade remunerada (embora a acumulação de cargos públicos continue vedada). O substitutivo aprovado na CCJ ainda retira a previsão de a fusão, a extinção e a transformação de entidades da administração pública autárquica e fundacional serem realizadas via decreto autônomo do Poder Executivo.
Frentes no Congresso
Os principais entusiastas e defensores da PEC no Congresso estão reunidos na Frente Parlamentar Mista da Reforma Administrativa, que propõem a inclusão dos atuais servidores públicos e dos membros de Poder no que chamam de “plano de modernização do Estado”. O colegiado ainda defende o fim das aposentadorias e pensões vitalícias e da licença remunerada para servidores públicos que disputam eleições.
A fim de barrar dispositivos que possam promover uma desestruturação da administração pública, o Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado (Fonacate) e a Frente Servir Brasil elaboraram um texto substitutivo à PEC 32. Para que o texto seja apresentado como emenda substitutiva global, são necessárias 171 assinaturas de deputados federais. Segundo Rudinei Marques, presidente do Fonacate, a participação da sociedade é fundamental no processo de conhecimento do projeto “a fim de garantir apoio para que o serviço público não seja prejudicado”.
Entre as carreiras, é unânime o esmero em garantir a manutenção da estabilidade do serviço público, colocada em risco pela PEC. Outro ponto considerado extremamente prejudicial é o que promove a criação de cargos de liderança e assessoramento. A ocupação de tais cargos, de acordo com o que pretende o governo, seria feita por meio de seleção simplificada, abrindo um terreno fértil para o loteamento político da administração.
“Somos contra esse texto absurdo, que prejudica o serviço público. Eles [governo] não escutaram os servidores, e vamos apresentar um texto substitutivo. Não vamos aceitar o fim da estabilidade, queremos tirar os cargos de assessoramento. O argumento de que o servidor público tira a qualidade do serviço já foi derrubado”, afirma o Professor Israel Batista.
Como não bastassem as fragilidades apontadas, a proposta defendida pelo governo não engloba os chamados membros do Poder, como parlamentares, juízes, desembargadores, ministros de tribunais superiores, promotores e procuradores. As mudanças do texto governista também poupam os militares.
Nesse ponto, residem algumas das principais críticas dos que buscam a elaboração de um texto capaz de suprir as necessidades do serviço público, como avalia o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), integrante da Frente Servir Brasil. Para ele, uma Reforma Administrativa só será válida quando não houver uma espécie de caça às bruxas, com artilharia voltada aos servidores públicos.
“Sabemos da necessidade de uma mudança no setor, mas esta reforma que está sendo proposta trata os desiguais de forma igual e reproduz desigualdades. Não podemos aceitar”, conclui o senador.
“O desejável seria que essa Reforma Administrativa, do jeito que está, nem tramitasse. A PEC 32 é ruim, foi feita para atingir o serviço público, elaborada por quem não conhece o serviço público. Por tudo isso, ela é contra ao que é de interesse público”, avalia George Alex Lima, diretor de Assuntos Parlamentares do Sindifisco Nacional.
Ao longo dos últimos meses, a Diretoria de Assuntos Parlamentares mapeou os pontos críticos da proposta do Executivo e iniciou o processo de elaboração de emendas. As mudanças no texto serão apresentadas na comissão especial. Para que as emendas sejam acatadas, é preciso que tenham o apoiamento mínimo de 171 deputados federais, o que representa 1/3 dos 513 parlamentares. Após passar pela votação na comissão e no plenário da Câmara, a proposta ainda precisa ser votada em dois turnos no Senado antes de ser promulgada.
“Por meio do contato dos parceiros do trabalho parlamentar com representantes de suas respectivas bases, poderemos alertar os congressistas sobre as falácias da Reforma Administrativa, buscar apoio às nossas emendas e sedimentar compromissos pela alteração do texto original”, acrescenta Marcos Assunção, também diretor de Assuntos Parlamentares.
A pressão das entidades em busca de alterações no texto ganhou no início do ano, um reforço expressivo, com o lançamento do site www.naoapec32.com.br, que traz um medidor, o Reformômetro, apontando como se posiciona cada um dos deputados federais e senadores em relação à matéria, além de dispor de links para as redes sociais de todos os parlamentares.
“Um ponto importantíssimo que o governo propositalmente esquece é que há como ajustar as contas públicas também pelo lado da receita (e não apenas mediante cortes nas despesas com pessoal). Nesse sentido, o Sindifisco Nacional tem apresentado projetos e participado de inúmeras discussões em prol de maior justiça e equilíbrio fiscal. Alertando sobre necessidade de impor progressividade no nosso sistema tributário, de tributar os lucros e dividendos, dentre outras ações”, destaca Marcos Assunção.
