O CARF como órgão revisor de atos administrativo/tributários e o voto de qualidade

Por Francisco de Sales Ribeiro de Queiroz (*)

Surpreendentemente a Câmara dos Deputados voltou a aprovar o fim do voto de qualidade fazendário no CARF, através de emenda aglutinativa na Medida Provisória 899/2019, reprisando o que já fora conseguido em outubro/2017, através da Medida Provisória (MP) 783/2017, que à época foi vetada pelo então Presidente Michel Temer, sendo de se esperar que o bom senso e a preocupação com a própria sobrevivência das fianças públicas volte a se sobrepor a interesses privados, mediante novo veto presidencial.

Apresso-me, pois, em expor minha singela opinião a respeito, em absoluta oposição ao que foi aprovado pela Câmara de Deputados.

O entendimento ora externado deve-se ao fato de o Brasil desde sempre ter adotado o sistema inglês de jurisdição una, de onde se conclui que estamos tratando de um órgão meramente revisor dos atos administrativo/tributários praticados pela administração tributária federal e não de um órgão julgador por excelência, estatura essa que constitucionalmente é reservada ao Poder Judiciário.

Significa dizer que as decisões proferidas em desfavor do contribuinte não fazem coisa julgada, podendo o mesmo submeter seu inconformismo à apreciação das instâncias próprias do Poder Judiciário, como sói acontecer na quase totalidade dos casos.

É consabido que a Carta Magna garante o duplo grau de jurisdição do contencioso nas esferas administrativa e judicial para a solução dos litígios em matéria tributária e fiscal e determina também que (Art. 5 – XXXV – CF/88) a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, sendo esse o fundamento constitucional que garante a tutela judicial ao contribuinte que não tenha logrado êxito na apreciação administrativa do seu apelo.

Dessa forma, tem-se que, mesmo em se tratando de uma decisão proferida favoravelmente à Fazenda Nacional pelo voto de qualidade, não se estaria retirando ou lesando qualquer direito do cidadão/contribuinte.

Entretanto, essa proteção constitucional não assiste a Fazenda Nacional, nos casos em que dessa revisão administrativa do ato resulte a desconstituição total ou parcial do crédito tributário ou do reconhecimento de direito pleiteado pelo contribuinte, até porque seria inconcebível o cabimento de recurso judicial tendo como impetrante o órgão revisor contra seu próprio ato revisional.

Entendo, pois, que a principal razão que leva à imprescindibilidade do voto de qualidade no CARF deve-se à necessária proteção do bem público representado pelos tributos e contribuições previdenciárias constituídos mediante ato de ofício do agente fiscal e o reconhecimento de direito pleiteado pelo contribuinte, já que é definitiva a decisão do órgão revisor proferida em desfavor da Fazenda Nacional.

Também a esse respeito merece destaque o caso em que a apreciação do inconformismo do contribuinte envolve matéria polêmica que ainda careceria de pronunciamento dos Tribunais Superiores, situação essa que, por uma questão de segurança jurídica e até mesmo de incompetência jurisdicional, não deve ser decidida em sede de revisão de ato administrativo, porquanto, em face do seu caráter de definitividade em relação à Fazenda Nacional, restaria afastada qualquer possibilidade de recuperação do crédito tributário exonerado em razão de decisão administrativa favorável ao contribuinte que venha a se mostrar em desacordo com entendimento judicial posteriormente exarado.

Evidentemente, essa é uma garantia vital à proteção das contas públicas e não pode ser imaginada sem a existência do voto de qualidade fazendário.

Com todas as vênias dos que pensam diferente, entendo que o contexto não comporta opiniões no sentido de que a extinção do voto de qualidade fazendário ensejaria uma paridade de armas entre as partes, ou que estaria em consonância com a regra do art. 112 do CTN, que dispõe sobre a interpretação da lei de maneira mais favorável ao contribuinte, ou, ainda, de que essa medida estaria em consonância com o princípio do in dubio pro contribuinte, pois, conforme já asseverado, essas opiniões seriam perfeitas se estivéssemos tratando de um órgão judicante e não de um órgão administrativo, revisor dos seus próprios atos.

Indubitavelmente, as decisões proferidas pelo CARF primam pela elevada qualidade e técnica jurídica, representando assim uma importante fonte de consulta e valoroso auxílio aos operadores do Direito e ao próprio Judiciário, na medida em que retira do mundo jurídico litígios que reconhecidamente careceriam de sustentação, evitando que venham a aportar no já sobrecarregado contencioso judicial, além de poupar os efeitos sucumbenciais que lhes seriam próprios.

Vejo, assim, que aos Conselheiros, independentemente da sua representação ser fazendária ou dos contribuintes, a sociedade delegou poderes para bem representá-la nessa nobre e difícil missão de julgador/revisor administrativo, não cabendo aqui levantamento de questiúnculas envolvendo imaginativos conflitos de interesses corporativos ou pessoais, insinuando-se um falso clima de enfrentamento entre representações que, ao fim e ao cabo, desenvolvem suas atividades com o único objetivo de oferecer a melhor solução aos litígios tributários e previdenciários, com agilidade e justiça, conforme tem levado a efeito ao longo dos seus quase 95 anos de existência.

Dessa forma, se existem mudanças e aperfeiçoamentos a ser feitos, devem os mesmos ser tratados e cuidadosamente analisados quanto à sua viabilidade e oportunidade, jamais da forma como ora se pretende, aproveitando-se oportunisticamente da Medida Provisória 899/2019, conhecida popularmente como MP do Contribuinte Legal, que regula a negociação de débitos fiscais com a União.

Reputo, assim, nesta minha despretensiosa manifestação, como equivocada essa iniciativa legislativa e não vislumbro a possibilidade de a mesma vir a prosperar. Ademais, o cidadão/contribuinte brasileiro merece coisa melhor dos nossos fazedores de leis.

(*) Francisco de Sales Ribeiro de Queiroz é Auditor-Fiscal e ex-conselheiro do CARF

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