
“In dubio pro contribuinte”. Com a utilização equivocada e descontextualizada desse princípio, os parlamentares brasileiros aprovaram, e o governo sancionou, o fim do voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) na Lei 13.988, armando uma bomba com potencial para erodir de vez a busca pela justiça tributária no Brasil.
O Carf é um órgão colegiado que faz parte do Ministério da Economia e foi criado para julgar recursos de contribuintes acerca da aplicação da legislação referente a tributos administrados pela Receita Federal. As seções do conselho são compostas, cada uma, por quatro câmaras, que podem ser divididas em até duas turmas de julgamento. Cada uma delas é formada por quatro representantes da Fazenda Pública e quatro dos contribuintes, ficando a presidência a cargo dos primeiros.
A interpretação mais favorável ao contribuinte, em caso de dúvidas, é uma determinação consignada no artigo 112 do Código Tributário Nacional, mas há um pequeno detalhe que, no caso, faz toda a diferença: de acordo com o CTN, o princípio é aplicável tão somente a infrações e penalidades tributárias, não ao tributo em si. Possuindo o CTN status de lei complementar, a exegese do artigo 112 só poderia ser “revogada” por outra norma de mesmo nível, o que não é o caso da Lei 13.988. E essa é apenas uma das muitas irregularidades na mudança promovida na dinâmica do Carf.
Com o fim do voto de qualidade, embutido clandestinamente no Projeto de Lei de Conversão (PLC) 2/2020, oriundo da Medida Provisória 899, passa a valer, em caso de empate, o entendimento mais favorável ao contribuinte. Mas não qualquer contribuinte: os principais agraciados são aqueles que, com estruturas complexas de apoio fiscal e acesso aos melhores (e mais caros) especialistas do “mercado tributário”, costumam elaborar planejamentos tributários sofisticados para burlar o Fisco e derrubar autos de infração milionários ou, não raramente, bilionários. Como agravante, muitos crimes de ordem tributária passarão impunes.
O novo formato muda um rito processual em curso há noventa anos, em que o desempate era feito pelo voto do presidente da turma, sempre um Auditor-Fiscal da Receita Federal. Ao posicionar o contrapeso do lado do contribuinte, a nova lei, na prática, retira dos Auditores-Fiscais a prerrogativa de interpretar a legislação tributária (definida nos artigos 107 a 112 do CTN), transferindo-a para a iniciativa privada. Mais uma diretriz do CTN atropelada, mais um capítulo do festival de inconstitucionalidades perpetradas na Lei 13.988.
O presidente do Sindifisco Nacional, Kleber Cabral, classificou a extinção do voto de qualidade como “descalabro”. “Com essa mudança, em casos de empate, o contribuinte ficará totalmente livre das autuações do Fisco. É importante frisar que as grandes empresas que sempre influenciaram as confederações na indicação dos conselheiros do Carf, agora terão poder total de interpretação da legislação tributária. Ou seja, entregou-se nas mãos dos próprios autuados pela Receita Federal o destino dos seus recursos”, critica.
Kleber lembra ainda que cerca de 27% dos autos de infração possuem representações fiscais para fins penais, por indício de cometimento de crime de sonegação, lavagem de dinheiro, corrupção, evasão de divisas, entre outros delitos financeiros. “As autuações geralmente definidas por voto de qualidade correspondem aos valores mais expressivos e alcançam justamente os casos envolvendo planejamentos abusivos mais sofisticados e as sonegações mais bem estruturadas”, pontuou o presidente do Sindifisco.
Ele destaca que a mudança foi aprovada exatamente no momento em que a Receita Federal tem se debruçado mais detida e intensamente sobre “os andares de cima da sociedade”. A instituição vem batendo recordes de autuações, a partir da colaboração de equipes e unidades criadas para monitorar os grandes contribuintes (pessoas físicas e jurídicas), evitando falcatruas bilionárias implementadas por gente e por empresas poderosas. “Na prática, o que foi aprovado no Senado fará com que nunca mais esse estrato da sociedade seja incomodado pelo Fisco”, conclui.
O senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) foi um dos 28 parlamentares que, no Senado, firmou posição contrária à extinção do voto de qualidade no Carf, diferentemente dos 50 senadores que apoiaram a mudança. Para ele, o debate sobre as decisões do Carf “era o característico ‘jabuti’, ou seja, dispositivo que é irregularmente colocado em uma MP e que não tem ligação de mérito com a proposta original”. E acrescenta o que há de mais relevante: “é um dispositivo claramente prejudicial ao Erário”.
Para o diretor de Assuntos Parlamentares do Sindifisco Nacional, George Alex de Souza, o que mais chama a atenção é a vultosa cifra de tributos que fica comprometida a partir dessa alteração. “A perda do voto de qualidade no Carf foi um tremendo absurdo. É um prejuízo para a União que pode oscilar na casa dos R$ 60 bilhões por ano. A expectativa de recebimento da MP 889/19 para geração de recursos é na ordem de R$ 6 bilhões. Então, o governo vai receber R$ 6 bilhões, mas vai deixar de arrecadar até R$ 60 bilhões, já que em caso de dúvida o contribuinte terá a palavra final”, avalia.
Para o Auditor-Fiscal Charles Mayer, ex-presidente da 1ª Turma da 2ª Câmara da 3ª Seção do Carf, é um engano imaginar que o voto de qualidade tem sido sempre a favor da Fazenda. Segundo ele, 70% das decisões que utilizam o expediente respaldam as autuações da Receita Federal e 30% são a favor dos contribuintes. “O que não se pode é entregar a decisão final do contencioso administrativo nas mãos do contribuinte”, afirma.
Charles ainda lembra que, caso o contribuinte saia derrotado de um julgamento no Carf, ele sempre poderá apelar para o Poder Judiciário. Como essa possibilidade não é facultada à Fazenda, ela sempre estará num “desequilíbrio de armas”. Além disso, o Auditor considera um erro o argumento segundo o qual os presidentes de turmas tinham dois votos. “Votam apenas uma vez. Em caso de empate, o voto dos presidentes prevalecia. Mas não votam duas vezes”, defende.
Ele aposta na possibilidade de que toda essa discussão, com vários setores se manifestando, possa contribuir para superar um modelo já esgotado. “É preciso debater um novo modelo com todos os órgãos, com as universidades, com o Sindifisco Nacional. O Carf precisa ser fortalecido para dar mais transparência e se tornar um centro de debates importante das questões tributárias. O que aconteceu foi um absurdo”, avalia.
A modificação na estrutura dos julgamentos do Carf mobilizou estudiosos de inúmeras instituições de renome, a exemplo da Universidade de São Paulo e da Fundação Getúlio Vargas, que manifestaram preocupação com a medida.
O rosário de ofensas à Carta Magna motivou as Ações Diretas de Inconstitucionalidade 6399 e 6403, impetradas, respectivamente, pela Procuradoria-Geral da República (PGR) e pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), ambas fundamentadas em representações do Sindifisco Nacional e distribuídas para a relatoria do ministro Marco Aurélio.
Embora as ações possuam pedido liminar, o ministro decidiu enviá-las para apreciação do plenário da Corte. Caso a medida não seja revertida, o Brasil já começa o esforço de reconstrução pós-pandemia perdendo o jogo. E, com as presumíveis e fatídicas consequências para a arrecadação e para a distribuição equitativa da carga tributária, o placar tende a ficar ainda pior com o passar dos anos.