Bônus de Eficiência: a saga de um acordo salarial nunca cumprido

Há um princípio no Direito Civil e no Direito Internacional chamado “pacta sunt servanda”. Inspirado num antigo brocardo latino, significa simplesmente que “pactos devem ser honrados”. Em solo brasileiro, no entanto, as práticas e os princípios nem sempre convergem. E o mau exemplo, às vezes, vem de cima.

Há pouco mais de três anos, os Auditores-Fiscais da Receita Federal iniciaram uma batalha pelo direito à percepção de uma parcela remuneratória variável, a ser paga conforme a produtividade. Após muitas negociações com o governo federal, o chamado Bônus de Eficiência foi implementado em janeiro de 2017, por força da Medida Provisória 765/16, convertida posteriormente, na Lei 13.464/17. O acordo salarial que motivou a edição da MP percorreu gabinetes de três presidentes da República – Dilma Rousseff, Michel Temer e Jair Bolsonaro – enfrentando algumas resistências.

A MP previa que, até que fosse estabelecida a metodologia para a mensuração da produtividade global da Receita e fixado o índice de eficiência institucional, o bônus seria pago em valor fixo. Durante a tramitação da medida, a base de cálculo do bônus – constituída por duas rubricas do Fundaf (Fundo Especial de Desenvolvimento e Aperfeiçoamento das Atividades de Fiscalização) – foi retirada do texto, inviabilizando o cálculo da gratificação.

Era necessário que o governo definisse outra base, o que, no entendimento de boa parte dos Auditores- Fiscais, poderia ser feito por decreto. Um ato interno estabelecendo a metodologia de mensuração da produtividade e o índice institucional foi editado pouco tempo depois. No entanto, a base de cálculo continuava inexistente, situação que perdura até hoje.

No ano passado, a expectativa de regulamentação da parcela variável deu lugar a embates que chegaram a colocar em xeque a manutenção dos pagamentos e, por consequência, a sobrevida da atual forma de remuneração dos Auditores- Fiscais. Uma representação aberta no início de março passado no Tribunal de Contas da União, por iniciativa da Secretaria de Macroavaliação Governamental (Semag) do próprio TCU, questionou a legalidade do Bônus de Eficiência.

À época, a notícia caiu como uma bomba sobre o corpo funcional da Receita, sobretudo diante do posicionamento do relator do caso, ministro Bruno Dantas, que chegou a cogitar a suspensão do bônus por medida cautelar. Depois de ouvir as explicações da Receita Federal, do Ministério da Economia e do próprio Sindifisco Nacional, o ministro mudou o entendimento e acabou transformando a cautelar em inspeção. Coube à Semag apresentar um relatório mais aprofundado sobre o caso, que chegou às mãos de Bruno Dantas no início de maio.

O documento aponta que o governo teria descumprido a Lei de Responsabilidade Fiscal ao criar uma nova “despesa” sem aumentar tributos ou cortar gastos. A secretaria também questiona a não incidência de contribuição previdenciária sobre o bônus, alega que o ato administrativo que implementou a nova remuneração não tem sustentação legal e contesta o fato de o bônus estar sendo pago sem a correspondente aferição de eficiência e produtividade do órgão.

Contraponto

A cúpula da Receita Federal e os Auditores-Fiscais, por sua vez, saíram em defesa do bônus. Em reuniões com o relator Bruno Dantas, com outros ministros do TCU e com interlocutores do governo, dirigentes do Sindifisco Nacional reiteraram a legalidade da parcela remuneratória, amparados pela própria Lei 13.464, por um parecer do ex-ministro do STJ, José Augusto Delgado, e pela experiência bem-sucedida de diversos estados da Federação e de outros países que mantêm programas de incentivo à produtividade destinado de fiscais das áreas tributária e aduaneira. Publicação recente do CIAT (Centro Interamericano de Administrações Tributárias) demonstra que, na maioria dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), o modelo de remuneração da administração tributária está atrelado à produtividade.

Em sua análise técnica, focada nos preceitos constitucionais da Previsão de Limitação de Despesas, do Poder Regulamentar e do Princípio da Reserva de Lei, José Augusto Delgado destacou que a Lei 13.464 está em perfeita consonância com a Constituição Federal, por considerar, entre outros pontos, que os pagamentos do Bônus de Eficiência vêm ocorrendo com a devida previsão orçamentária e sem comprometer o teto de gastos públicos. A leitura do parecerista veio em um momento no qual a primeira minuta do decreto de regulamentação estava pronta, porém estacionada na Casa Civil da Presidência da República. “O pretenso decreto não está fixando ou alterando remuneração, concedendo reajuste, criando ou aumentando despesas, tampouco inovando na ordem jurídica”, concluiu Delgado.

O presidente do Sindifisco, Kleber Cabral, também rebateu duramente a alegação de que o bônus não deveria estar sendo pago sem a devida aferição de produtividade. Observou que, ao contrário de sugerir o descumprimento da Lei 13.464, a Semag deveria ter feito o oposto. “Imaginava-se que a secretaria, preocupada com a mora do Executivo e com os efeitos jurídicos dela decorrentes, proporia ao ministro [Bruno Dantas] a adoção de medidas urgentes para instar o Executivo a efetuar a regulamentação, obviamente observando-se as necessárias previsões orçamentárias”, salientou o Auditor-Fiscal.

Um parecer da AGU (Advocacia-Geral da União) sobre o imbróglio, demandado no âmbito da inspeção, apontou solução semelhante. “Para efetivamente dar fiel cumprimento ao disposto na Lei 13.464/2017, basta a definição da base de cálculo por meio do decreto, haja vista que a Lei Orçamen- tária conterá a fixação da despesa para o pagamento do bônus”, pontua o documento.

Incompetência jurídica

Segundo Kleber Cabral, a Corte de Contas extrapolou suas competências legais ao lançar mão de questionamentos de ordem constitucional. “O TCU, sabidamente, não pode fazer o chamado controle de constitucionalidade da lei”, explicou. “Ao Tribunal compete auxiliar o Congresso Nacional no exercício do controle externo, e não julgar se o legislador errou ou acertou ao aprovar determinada lei; se o conteúdo está ou não condizente com o texto constitucional. Mas foi precisamente isso que a Semag do TCU fez”, concluiu.

A palavra final sobre o caso, no âmbito do TCU, cabe ao plenário. Depois de o processo ser incluído e retirado de pauta, por duas vezes, o julgamento foi iniciado no dia 7 de agosto do ano passado e o ministro Benjamin Zymler, embora tenha concordado com Bruno Dantas, no mérito, reforçou o posicionamento do Sindifisco de que não cabe ao TCU decidir sobre a matéria, vez que o “controle abstrato de constitucionalidade” é de competência privativa do Supremo Tribunal Federal.

Há um princípio no Direito Civil e no Direito Internacional chamado “pacta sunt servanda”. Inspirado num antigo brocardo latino, significa simplesmente que “pactos devem ser honrados”. Em solo brasileiro, no entanto, as práticas e os princípios nem sempre convergem. E o mau exemplo, às vezes, vem de cima.

O relator, por sua vez, propôs prazo de 30 dias para o Poder Executivo apresentar medidas de compensação financeira ao Bônus de Eficiência, indicando que, esgotado o prazo sem qualquer providência, o benefício deveria ser suspenso por alegada afronta à Lei de Responsabilidade Fiscal. O voto foi acompanhado pelo ministro Walton Alencar, mas o ministro André Luiz de Carvalho abriu divergência apontando inúmeros equívocos no relatório e a falta de consenso do plenário sobre o tema. Após pedido de vista do ministro Raimundo Carreiro, o TCU suspendeu a sessão. Na retomada do julgamento, em 21 de agosto, Carreiro apresentou uma segunda alternativa, ao propor a ampliação, para até 90 dias, do prazo para o governo fazer os ajustes necessários à regularização do bônus, sob pena de suspensão do pagamento. A sugestão foi acatada pelos demais integrantes do plenário, inclusive pelo relator Bruno Dantas.

O acórdão determina, contudo, que o governo apresente compensação financeira não apenas para a falta de contribuição previdenciária sobre o bônus como, também, para a totalidade da parcela variável. Antes do escoamento do prazo, em setembro, o Ministério da Economia, através da Advocacia- Geral da União, apresentou ao plenário pedido de reexame, que desde então aguarda distribuição. Conforme as regras do TCU, o recurso deverá ficar a cargo de outro relator, que pode ratificar ou reformar o voto de Bruno Dantas, submetendo-o a novo julgamento, ainda sem previsão de data.

Enquanto não há uma definição por parte do TCU, a regulamentação do bônus permanece travada. Em reuniões com a Receita Federal e o Ministério da Economia, os Auditores-Fiscais já demonstraram que é preciso buscar um desfecho justo e célere ao caso. Desde que o acordo foi fechado, lá se vão mais de quatro anos e três presidentes da República. Se o governo federal busca alavancar a própria credibilidade, dentro e fora do país, deve começar o trabalho recuperando o crédito e cumprindo os acordos firmados com aqueles que o servem.

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