
Por Marchezan Taveira (*)
A política é essencialmente disputa pelo orçamento público. Por mais que os governantes expressem desejos ou tracem planos, se a pretensão não estiver materializada numa rubrica orçamentária, estamos diante de discurso vazio, palavras ao vento. A condição imposta pela Lei Orçamentária de 2020 à Receita Federal é um sinalizador da posição que a administração tributária e aduaneira ocupa no quadro de prioridades do governo, ainda que se venha a dizer o contrário.
O orçamento destinado às despesas discricionárias do órgão despencou de 2,8 bilhões em 2019 para 1,8 bilhão em 2020. Tal valor, quando descontada a inflação do período, chega a ser menor do que a dotação alocada no longínquo ano de 2007. É certo que a maior parte dos órgãos e ministérios levou uma tesourada em suas disponibilidades. No entanto, a incisão na Receita foi mais profunda do que em quase todos eles. Além de espaço absoluto, o órgão sofreu substancial perda de espaço relativo no orçamento. Invocando a frase que abre o texto, essa reflexão evidencia aquilo que a intuição já nos indicava: a deterioração do cacife político da instituição.
Pode-se argumentar – e tal argumento tem-se tornado internamente corriqueiro – que a Receita não é o colosso de eficiência que muitos acreditam. Afinal, como explicar os valores despendidos com ideias como o Projeto Conviver, que pretendia promover a integração entre Auditores e servidores por meio de iniciativas como cirandas em torno de um girassol? E quem não se recorda das celeumas em torno da prática recorrente – e não integralmente superada – do desvio de função, com Auditores-Fiscais subaproveitados em afazeres administrativos e auxiliares? Ainda: será que é mesmo necessário preservar a estrutura com dez superintendências?
Em que pesem essas e outras eventuais ressalvas, a severidade do corte é provavelmente inédita e muito dificilmente não provocará consequências drásticas nas atividades finalísticas do órgão. Nos Estados Unidos, o IRS (Internal Revenue Service), a administração tributária de lá, perdeu desde 2010 cerca de 20% da sua dotação – em ajustes graduais, entretanto. No ano passado, a imprensa americana repercutiu um estudo pioneiro no qual pesquisadores da Kelley School of Business, da Universidade de Indiana, apontavam as perdas em arrecadação decorrentes do progressivo contingenciamento orçamentário. Segundo eles, os cortes no IRS haviam acarretado, até então, uma perda de 34,3 bilhões de dólares em receitas de impostos de grandes corporações. A lógica é simples: menos estrutura e menos logística tornam as fiscalizações menos numerosas e mais precárias.
No Brasil não tem como ser diferente. A crescente precariedade infligida à atuação dos Auditores- -Fiscais dialoga diretamente com a regressividade da carga tributária nacional. Uma queda na qualidade e na quantidade das auditorias aumenta as chances de passarem despercebidos esquemas sutis e complexos de evasão tributária, cuja operacionalização demanda alto grau de especialização e estrutura, apenas acessível a grandes corporações ou contribuintes. Ao final, alguém tem que pagar a conta do que deixou de ser recolhido com esses artifícios. Invariavelmente, sobra para quem não tem a mesma capacidade de planejamento fiscal.
Não se pode alegar que a radical compressão orçamentária imposta à Receita Federal seja decorrente tão somente da política de ajuste fiscal conduzida pelo governo. Para além do aperto nos gastos, há uma mudança estrutural na distribuição do orçamento. Em uma metáfora: para além do encolhimento do mundo, está havendo um deslocamento de placas tectônicas – boa parte dos recursos que se desprendem daqui, se acoplam ali, e assim vão se formando novas ilhas, ou continentes, de poder e pressão, ao passo que outras vão submergindo.
O mesmo orçamento que contempla a asfixia orçamentária da Receita promoveu um incremento de quase 20% no fundo partidário. Setores específicos do funcionalismo, como policiais e forças armadas, têm sido cortejados com acréscimos salariais e regras mais complacentes na reestruturação da Previdência, como a manutenção da integralidade e ausência de idade mínima. Além de diplomatas e militares, juízes e promotores foram poupados na PEC emergencial da regra que prevê suspensão de progressões e promoções. E aqui um parêntese: nos dois últimos anos, o Judiciário e o Ministério Público estouraram o teto de gastos e precisaram se socorrer financeiramente do Executivo. Em 2018, o auxílio foi de 2,1 bilhões e, no ano passado, de 2,5 bilhões.
Diante de tantas contradições, é de se questionar se o governo efetivamente busca o ajuste fiscal – que, por presumir o equilíbrio entre receitas e despesas, exige preservação e protagonismo da administração tributária – ou se o plano é cortar gastos rapidamente e a qualquer custo, mesmo sob o risco de desorganização e colapso na máquina do Estado.
(*) Marchezan Taveira é Auditor-Fiscal e diretor de Comunicação do Sindifisco Nacional