Ambiente conflagrado nos aeroportos

Aeroporto de Guarulhos: maior terminal aeroportuário da América do Sul

Se só tem no Brasil e não é jabuticaba, boa coisa não é. A frase irônica, atribuída a Mário Henrique Simonsen, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento, aplica-se com perfeição à situação surreal criada nos aeroportos brasileiros pela Resolução 207 da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil). A norma obrigava Auditores-Fiscais em serviço nos aeroportos a se submeterem a procedimento de inspeção para ingressar nas zonas primárias dos terminais. A “jabuticaba” normativa, fruto nativo da exuberante flora burocrática tupiniquim, provocou confusão operacional e, em alguns momentos, praticamente inviabilizou o trabalho da Receita Federal.

A solução ideal não veio – o reconhecimento formal da precedência aduaneira dos Auditores, excluindo-os expressamente de qualquer tipo de revista – mas venceu o bom senso entre os cerca de 30 integrantes do governo reunidos na manhã de 8 de fevereiro, entre os quais o ministro da Justiça, Sérgio Moro, o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Freitas, o secretário-executivo do Ministério da Economia, Marcelo Guaranys, o secretário da Receita Federal, Marcos Cintra e o presidente da Anac, José Ricardo Botelho, além de representantes do Ministério da Defesa e da Casa Civil, entre outros órgãos. Naquele mesmo dia, o governo federal publicaria, em edição extra do Diário Oficial da União, o Decreto 9.704/19, que altera o Programa Nacional de Segurança da Aviação Civil contra Atos de Interferência Ilícita (PNAVSEC), para impor tratamento isonômico entre Receita Federal e Polícia Federal, até que uma nova regulamentação seja feita pela Anac.

Houve a violação das normas que garantem a livre circulação dos Auditores-Fiscais no exercício de suas atribuições legais.

Joana Lages, Auditora-Fiscal e delegada da Alfândega no aeroporto do Galeão, no Rio

“A solução foi aquém do que se esperava, mas pelo menos resolveu temporariamente o problema”, avalia o presidente do Sindifisco Nacional, Kleber Cabral. De acordo com o Decreto, antes de ingressarem em zonas aeroportuárias restritas, todas as pessoas – sem exceção – devem se submeter à inspeção de segurança, que pode ser substituída por outras medidas baseadas em avaliação de risco, a serem regulamentadas pela Anac até o dia 10 de maio. Enquanto isso não ocorre, integrantes da Polícia Federal e da Receita Federal estarão isentos do procedimento.

“Na prática, até a regulamentação, será necessário apenas o credenciamento dos Auditores-Fiscais para ingresso nas áreas restritas, e não mais a inspeção, a exemplo do que já ocorria, como exceção, com os policiais federais”, explica Kleber. A solução, embora paliativa e provisória, é fruto de intensa atuação institucional dos Auditores-Fiscais e da nova direção do Sindifisco, depois de uma decisão do TRF (Tribunal Regional Federal) da 1ª Região, em novembro de 2018, conceder efeito suspensivo a um recurso da agência reguladora contra a sentença de primeira instância, que havia excluído os Auditores-Fiscais do procedimento de revista. Desde agosto de 2013, data da primeira liminar favorável ao sindicato, os agentes de proteção da aviação civil (APAC) estavam proibidos de revistar Auditores nas zonas restritas dos aeroportos.

Auditores da Receita Federal no Galeão: de fiscais a fiscalizados

A decisão do TRF de afastar a eficácia da sentença, até que o mérito da ação seja discutido pelos desembargadores, foi recebida com perplexidade por toda a classe dos Auditores-Fiscais, especialmente aqueles que atuam na Aduana. “Ficamos todos muito preocupados com os entraves operacionais às nossas atividades que, certamente, a inspeção iria causar”, relembra a Auditora-Fiscal Joana Aparecida Lages, delegada da Alfândega da Receita Federal no aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro.

Joana conta que a inspeção vinha provocando atrasos nos procedimentos de fiscalização de passageiros e bagagens – bem como na restituição de malas e encomendas –, dificuldades de acesso da Direp (Divisão de Vigilância e Repressão ao Contrabando e Descaminho) para realização de operações conjuntas de rotina e restrições de circulação, entre os terminais do aeroporto, de veículos oficiais da Receita Federal. “Enfim, houve a violação das normas que garantem a livre circulação dos Auditores-Fiscais no exercício de suas atribuições legais”, comenta a Auditora.

Segundo ela, os 68 Auditores que atuam no Galeão tiveram a função de credenciamento desabilitada, o que impediu a abertura automática de portas internas das áreas restritas, fundamental para acesso aos chamados fingers (pontes de embarque e desembarque de passageiros) e a outras áreas comuns à rotina operacional. Também houve tentativa de impedir os Auditores-Fiscais de acessarem a área de bagagem portando instrumentos metálicos, como estiletes e alicates, “extremamente necessários ao trabalho no Serviço de Conferência de Bagagem e no Serviço de Vigilância e Repressão”.

Ainda no Galeão, os agentes terceirizados foram orientados a fazer a inspeção, não apenas na entrada, mas também na saída das áreas restritas. “Imediatamente ordenamos a reversão desse entendimento, mas houve desgaste, perda de tempo e atraso em nossas operações”, pontua Joana.

Os problemas se repetiram no Aeroporto Internacional de Confins, em Minas Gerais, onde o procedimento de inspeção provocou atraso em voos e prejuízos ao trabalho de fiscalização. O Auditor-Fiscal Marco Antônio Dumont, inspetor-chefe da Receita Federal no terminal, conta que a revista passou a ser feita diversas vezes ao dia, porque o trabalho dos Auditores requer um permanente “vai e vem” entre o escritório, os alojamentos e as áreas restritas. “Toda vez que o Auditor tinha que entrar na área restrita, no mesmo dia, ele tinha que ser inspecionado”, assinala Marco Antônio.

Para deixar o prédio da inspetoria e se dirigir ao pátio, com o carro oficial, era necessário sair com até uma hora e meia de antecedência, para “entrar na fila” e aguardar a inspeção de outros veículos. Nesses casos, tanto os Auditores quanto os carros eram criteriosamente examinados pelos agentes. O Auditor afirma que até uma porta do alojamento dos plantonistas, que dava acesso à área de embarque, foi bloqueada por determinação da Anac. “Com isso, os Auditores-Fiscais foram obrigados a dar uma volta de quase dez minutos para se submeterem à inspeção comum dos passageiros”, detalha.

O procedimento teve como alvo até a cadela farejadora utilizada pela Receita Federal em Confins para combate ao tráfico de drogas em voos internacionais. Sempre que deixava o canil, a simpática Ivy se submetia à inspeção, na qual era solicitada inclusive a retirada de sua coleira. “Ora, você consegue segurar e ter controle do cão na coleira, mas não fora dela”, critica Marco Antônio. Como, por mais de uma vez e em face das dificuldades práticas, a servidora que conduzia Ivy não teve como obedecer à “ordem”, foi preciso acionar os policiais federais, o que causou atraso de, ao menos, 40 minutos em voos rotineiros de Lisboa para o Brasil. Em outro caso, foi preciso abortar a operação para que o atraso não fosse ainda maior.

A cadela Ivy também passava pelo procedimento de inspeção

“Não sei se a gente chegou a perder algum alvo, mas ficamos com a sensação de que o resultado poderia ter sido melhor, porque é insano trabalhar dessa forma”, lamenta o inspetor. Também em Confins, no setor de despacho, chegou-se ao extremo de, por discordar da revista, um Auditor-Fiscal ficar impossibilitado de inspecionar uma aeronave que estava em processo de importação. “Aconteceu de o avião chegar e o delegado ter que ir, pessoalmente, fazer a inspeção”, afirma Marco Antônio. “Todo o trabalho no pátio exige que estejamos hábeis a trabalhar com efetividade e rapidez. A rapidez nós perdemos”.

Diante da crise operacional e institucional que se instalou nos aeroportos, o Sindifisco Nacional se mobilizou para buscar a revogação da Resolução 207. No dia 14 de janeiro, os diretores de Defesa Profissional, Levindo Siqueira Jorge e Leandro Oliveira, estiveram no Aeroporto Internacional de Viracopos, em Campinas, para conversar com os Auditores-Fiscais, in loco, e discutir providências em âmbito local e nacional. “Várias operações de combate ao tráfico de drogas e armas, assim como ao contrabando e ao descaminho, têm sido prejudicadas porque os Auditores-Fiscais não conseguem chegar a tempo ao local de risco”, reforçou na ocasião Levindo. “Não se trata de vaidade. É a falta de segurança que essa resolução está trazendo para os aeroportos”, complementou Leandro Oliveira.

Em Brasília, a Direção Nacional levou a questão ao ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, posicionando-se veementemente contra os dispositivos, por entender que, além de ferir a autoridade do cargo, eles violavam a precedência constitucional do Auditor-Fiscal sobre os demais setores administrativos – assegurada pelo artigo 37 da Constituição Federal e pelo artigo 17 do Regulamento Aduaneiro.

Houve a violação das normas que garantem a livre circulação dos Auditores-Fiscais no exercício de suas atribuições legais.

Joana Lages, Auditora-Fiscal e delegada da Alfândega no aeroporto do Galeão, no Rio

O tema também foi discutido, em várias oportunidades, com o secretário da Receita Federal, Marcos Cintra, que prontamente assumiu uma postura propositiva em defesa da instituição – ao contrário do que ocorreu em 2011, quando a administração do órgão foi conivente com a proposta da Anac e, por consequência, com a fragilização da fiscalização aduaneira. Publicamente, a Receita Federal desmentiu as alegações da Anac de que a inspeção de autoridades e servidores aduaneiros seria procedimento-padrão em todo o mundo e que teriam o “objetivo de assegurar os níveis de segurança dos aeroportos”.

Depois de consultar oficialmente vários países, a Receita emitiu nota esclarecendo que Japão, Itália, Rússia, Canadá, Argentina, Uruguai, França, Bélgica, Holanda e até mesmo os Estados Unidos, que “adotou severíssimas medidas de segurança em seus aeroportos após o episódio das torres gêmeas”, não submetem à inspeção os servidores da aduana. A nota também destacou que “jamais houve um único caso registrado em toda a história que pudesse ensejar a mera alegação de que servidores da Receita Federal, no exercício de suas atividades nos aeroportos do País, devessem ser incluídos como ‘um risco’ para a segurança dos aeroportos”.

Diante da forte mobilização institucional do Sindifisco e da própria Receita Federal, o governo tratou o tema com prioridade máxima, trazendo à discussão a Casa Civil e os ministérios da Infraestrutura, da Justiça e da Economia. A reunião de ministros e representantes das instituições envolvidas, no dia 8 de fevereiro, sacramentou a edição do Decreto 9.704, estabelecendo tratamento isonômico entre Receita e Polícia Federal. A regulamentação a ser realizada pela Anac passará por deliberação da Conaero (Comissão Nacional de Autoridades Aeroportuárias), instância na qual a Receita Federal possui assento. “Esperamos que a administração mantenha a postura institucional que tem marcado sua atuação nesse episódio: a de defesa do primado da Constituição Federal e das prerrogativas inerentes às autoridades aduaneiras”, projeta o presidente Kleber Cabral.

Enquanto não há uma regulamentação definitiva, os Auditores-Fiscais voltaram a exercer sua atividade, sem restrições, e a operacionalização dos processos de fiscalização voltou à normalidade nos aeroportos brasileiros. “Nós voltamos a ter o acesso autorizado às áreas restritas e retomamos a correta sistemática de trabalho”, diz Marco Antônio Dumont. “Entendo que foi um avanço para a imposição do imperioso respeito às leis e à Constituição”, finaliza Joana Lages.

Há poucos dias, no entanto, a Anac divulgou minuta de resolução que contraria algumas das recomendações feitas pela Receita Federal e avalizadas pela Casa Civil, acenando com nova possibilidade de embate e obstrução ao trabalho dos Auditores. O texto está sob consulta pública e o Sindifisco Nacional já alertou para a necessidade de adequação dos dispositivos controversos.

É por esse tipo de atuação que muitos questionam a própria existência de algumas agências reguladoras. O aparato estatal deve ser pensado para tornar mais simples a vida dos cidadãos e pagadores de impostos. Os obstáculos inutilmente colocados ao trabalho da Receita Federal nos aeroportos vão desaguar, no final, em mais burocracia e incômodo para os viajantes e operadores do comércio exterior. Como se percebe, ao contrário da fruta nativa de sabor adocicado e agradável, a “jabuticaba” que a Anac quer impor à sociedade possui um gosto extremamente amargo.

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